QuÍmica nos alimentos

A QUÍMICA DA CERVEJA

 

A cerveja é uma das bebidas alcoólicas mais populares do mundo. Qual será a Química por trás de sua produção e paladar único?

 

Por Carlos Vinícius Pinto dos Santos

 

Figura 1 - Par de tulipas com cerveja

Foto: Desconhecido, O Mundo da Química não detém direito sobre esta imagem

 

História

 

A cerveja é conhecida desde ao menos a Suméria Antiga, remontando a 6000 a.C1. É citada na Epopeia de Gilgamesh e no Egito antigo e, durante o reinado de Hamurabi (1760 a.C.), foi elaborada a primeira lei conhecida2 a respeito da produção e comercialização de cerveja com penas que previam até a de morte.

 

Sobre a cerveja antiga se entende toda bebida alcoólica à base de vegetais fermentada a partir de açúcares ou amido. Assim, virtualmente qualquer preparado vegetal pode dar origem a um tipo de cerveja, sendo as cervejas antigas tendo pouco mais do que a fermentação em comum umas com as outras.

 

A regulamentação moderna ocorreu em 1516 no Ducado da Baviera (Império Alemão) pela publicação da Lei de Pureza da Cerveja (Reinheitsgebot)3, no qual se define a cerveja como a bebida produzida somente a partir de água, malte de cevada, trigo e centeio e lúpulo (a levedura não era conhecida até o momento). Qualquer outro preparo distribuído como cerveja podia ser confiscado a partir de então e, apesar de algumas modificações terem sido implementadas ao longo dos anos, ainda hoje o respeito à Reinheitsgebot é tido como sinônimo de boa qualidade da cerveja produzida.

 

Ingredientes

 

Água

 

Figura 2 - Água límpida emanando de fonte natural

Foto: Desconhecido, O Mundo da Química não detém direito sobre esta imagem

 

A água é um dos ingredientes mais importantes em uma cerveja uma vez que, além de fazer parte do produto final, está presente em todas as etapas de sua produção.

 

Existem dois parâmetros principais sobre a água que afetam as características da cerveja: pH e a dureza da água. O pH médio da cerveja para consumo fica entre 5-6, mas durante o processo o controle do pH é bem mais restritivo e não raro há etapas em que a tolerância é de menos de 0,5 unidade de pH. A dureza da água afeta diretamente o sabor e a qualidade do tipo de cerveja1, sendo os principais íons presentes: SO4-2 (sulfato), HCO3- (bicarbonato), CO3-2 (carbonato), Ca+2 (cálcio) e Mg+2 (magnésio), todos causadores de dureza da água, além de Cl- (cloreto) e Na+ (sódio).

 

Levedura

 

Figura 3 - A levedura é um dos ingredientes mais importantes para produção de cerveja

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A levedura é o ator principal na produção da cerveja, uma vez que o etanol, gás carbônico e algumas substâncias que dão sabor são produzidos na fermentação. O teor alcoólico varia para cada tipo, sendo o da Pilsen no Brasil em torno de 5,5%, mas há tipos em que o teor ultrapassa os 50%4. O etanol atua como substrato na formação de ésteres que conferem sabor e aroma, além de ser o responsável pelos efeitos secundários da bebida. A quantidade de gás carbônico dissolvido depende tanto do grau de fermentação quanto das temperaturas durante o processo, sendo necessário por vezes adicionar CO2 para alcançar a especificação.

 

São utilizadas inúmeras variações da Saccharomyces cerevisiae como levedura principal, mas também podem ser utilizadas Saccharomyces brettanomyces, Saccharomyces pastorianus e Saccharomyces delbrueckii5, sendo as linhagens das grandes cervejeiras guardadas a sete chaves.

 

Lúpulo

 

Figura 4 - Frutos de lúpulo

Foto: Desconhecido, O Mundo da Química não detém direito sobre esta imagem

 

O lúpulo é um ingrediente obtido a partir de uma planta trepadeira (gênero Humulus) que é originária da Europa e do Oriente. Atualmente é produzida no mundo todo sendo a Alemanha, os Estados Unidos e a China os maiores produtores. Em 2014 o lúpulo foi introduzido no Brasil quase que por acidente na região da Serra da Mantiqueira, São Paulo6, e já há plantações na região serrana do Rio de Janeiro.

 

Possui propriedades antibióticas7,8, sendo portanto um excelente conservante natural na cerveja, além de conferir aroma e o sabor amargo típico da cerveja. Da resina do lúpulo são extraídas duas classes de substâncias importantes para produção de cerveja: os alfa ácidos e os beta ácidos7 que, apesar do nome, possuem a função enol ao invés de ácido carboxílico. Os alfa ácidos são substâncias que sofrem isomerização térmica para gerar iso alfa ácidos que, além do sabor amargo que produzem, são potentes bacteriostáticos de bactérias Gram-positivas - não há efeito sobre as Gram-negativas7, sendo necessários processos como a pasteurização para garantir a higienização da bebida. A humulona é o alfa ácido presente em maior quantidade no lúpulo.

 

Figura 5 - Estruturas químicas de algumas substâncias presentes no lúpulo

Imagem: O Mundo da Química

 

Os beta ácidos também tem efeito sobre bactérias Gram-positivas8 , mas não sofrem isomerização e não ajudam tanto no sabor. Entretanto, contribuem no aroma da cerveja e podem ser adicionados após a etapa de aquecimento. A estabilidade típica da espuma da cerveja também é atribuída à substâncias surfactantes presentes no lúpulo.

 

Malte

 

Figura 6 - Grãos de cevada podem ser sados para preparar o malte

Foto: Desconhecido, O Mundo da Química não detém direito sobre esta imagem

 

O malte é produzido pela germinação incompleta da cevada, onde após o surgimento da raiz (radícula) e caule (caulículo) os grãos são secos e torrrados. Esse processo se chama malteação e também é usado em outros produtos que utilizam malte. Outros cereais também podem produzir malte, sendo feita a devida indicação do cereal de origem (por exemplo, malte de aveia).

 

A função do processo de malteação é, ao permitir a germinação, liberar enzimas no grão que transformarão o amido em açúcares menores. Tão logo o teor de açúcares consumíveis pela levedura alcança um valor ótimo a germinação deve ser interrompida - uma vez que esses açúcares também serão consumidos no crescimento do broto.

 

Produção

 

A produção da cerveja começa pela trituração do malte seco a fim de expor seu conteúdo. A seguir, o malte triturado é misturado a água quente (cerca de 65ºC)9 para que as enzimas atuem nos carboidratos transformado-os em açúcares fermentáveis no processo chamado de brassagem, ou mosturação, e o produto final dessa etapa se chama mosto.

 

O mosto então deve ser filtrado para remoção de bagaços e cascas, de modo que todos os sólidos sejam removidos e não interfiram nas etapas seguintes. O mosto filtrado é então fervido para eliminação de microorganismos e é feita a adição do lúpulo que atuará como conservante até o produto final e irá acrescentar o sabor amargo típico da cerveja.

 

Esquema 1 - Processos envolvidos na produção industrial de cerveja

Crédito: O Mundo da Química

 

O mosto fervido é então resfriado a cerca de 20ºC e feita a adição das leveduras em um fermentador que possui a base cônica. O processo é lento e pode demorar mais de uma semana a depender do tipo de cerveja pretendido. É nessa etapa que álcool (etanol) e gás carbônico são produzidos - para evitar problemas de pressão a maior parte do CO2 escapa e depois pode ser adicionado no produto final. Os ésteres, éteres, compostos fenólicos e demais substâncias que conferem sabor e aroma também são formadas nessa etapa.

 

Após a etapa de fermentação o excesso de leveduras é retirado (o aspecto é semelhante ao de lama) e o conteúdo líquido com algumas leveduras permanece em maturação, também chamada de fermentação secundária, que é o repouso da bebida a baixas temperaturas para a eliminação de substâncias indesejáveis - compostos sulfurados que prejudicam a sabor ou a finalização da fermentação que poderia gerar mais CO2 do que o especificado. É nessa etapa que as notas da cerveja são definidas para o produto final e há diminuição de leveduras suspensas, o que clareia a bebeida, sendo uma etapa imprescindível para uma cerveja de qualidade.

 

O uso de anticongelantes é muito comum em linhas de resfriamento industrial e o ramo alimentício não é excessão. Dentre as substâncias utilizadas estão o dietilenoglicol e o etilenoglicol, sendo ambos líquidos incolores, viscosos, miscíveis em água e possuem sabor adocicado. Ambos são proibidos por lei10 de serem adicionados em alimentos devido a sua toxicidade: o dietilenoglicol possui elevada toxicidade - 0,14 mg/kg é a dose mínima para início dos sintomas e dose letal de 1,0-1,6 mg/kg. É um subproduto da síntese do etilenoglicol que, apesar de bem menos tóxico (dose mínima de 786 mg/Kg início dos sintomas em humanos), pode provocar naúseas, vômitos, danos aos rins e fígado e morte, sendo extensos os relatos de intoxicações fatais no mundo11. Se o controle das águas de processo não for rigoroso, a água contaminada pode ser introduzida por engano no produto final.

 

dietilenoglicol

Figura 7 - Substâncias anticongelantes que podem contaminar fatalmente a cerveja

Imagem: O Mundo da Química

 

Tanto o etilenoglicol quanto o dietilenoglicol estão envolvidos nos casos de contaminação de cervejas artesanais mineiras no início de 2020. A principal suspeita é de que foi utilizada água contaminada com essas substâncias na produção da cerveja de maneira inadvertida.

 

Após o fim da maturação (determinada pela densidade constante) a cerveja segue para o envase, pasteurização e carbonatação (regulação de CO2), onde então pode ser comercializada. Produtores artesanais em geral não tem acesso à pasteurização e, após o envase e correção dos níveis de CO2, as leveduras restantes continuam a atuar na bebida (cerveja viva) e sua permanência resfriada conserva seu frescor por mais tempo.

 

Os principais tipos de cerveja

 

Lager

 

São cervejas fermentadas pela Saccharomyces pastorianus a temperaturas inferiores a 15ºC. Devido a essa baixa temperatura o levedo se acumula na parte baixa do tanque, sendo chamada de baixa fermentação. Possuem sabor com forte presença de malte e lúpulo.

 

Pilsen (Pilsener)

 

É um tipo de Lager e tem como características a coloração clara e límpida e o paladar mais suave que a Lager típica.

 

Ale

 

Utilizam a Saccharomyces Cerevisiae e são produzidas a temperaturas por volta dos 20ºC, fazendo com que o levedo se acumule no topo do tanque caracterizando a alta fermentação. Esse processo cria mais ésteres, que por sua vez, conferem aromas frutados, de flor e de especiarias.

 

Weiss

 

É um tipo de Ale e seu nome vem do alemão Cerveja Branca. É produzida a partir de malte de trigo e em geral apresenta sabor suave, com notas de banana e cravo.

 

Escura

 

Possui muitos tipos e, dentre os puristas, é considerada um energético ao invés de cerveja. Em geral possuem baixo teor alcoólico (4% máximo, típico em torno de 1%) e se utiliza malte torrado ou tostado, além de água de alta dureza. A Malzbier comum no Brasil é um subtipo de Lager (american pale lager) em que se adiciona, após a fermentação, açúcar e corante caramelo (logo a cor não vem do malte).

 

Puro Malte x Milho

 

A produção moderna de cerveja é normatizada por cada país, de modo que pequenas variações são aceitáveis e não descaracterizam uma cerveja. No Brasil, a legislação[8] permite a adição de até 45% dos açúcares totais de fontes não-maltadas como milho e arroz. Mesmo sendo legal, essa substituição tem impacto direto nas qualidades aromática do produto final em comparação à outra que utiliza malte puro.

 

Devido a Reinheitsgebot o malte só pode ser feito a partir da cevada, centeio e trigo. Dessa forma, a cerveja que contém malte proveniente apenas das fontes permitidas pela Reinheitsgebot é considerada cerveja puro malte, ou cerveja malte puro.

 

Entretanto, o malte de cevada tem custo elevado, sabor mais intenso e coloração ambar típica. É comum misturar o malte com outras fontes de açúcares para formar blendas de diferentes teores para obter características específicas, podendo ser utilizados como cereais maltados, a aveia e o sorgo.

 

A grande polêmica reside nos cereais não maltados: arroz e, principalmente, milho. Eles não possuem qualquer papel na cerveja além de serem fonte de amido barato para levedura, o que acaba por empobrecer o sabor da cerveja.

 

 

Apesar disso, as cervejas Pilsen no Brasil encontraram grande aceitação pois esse sabor mais suave se traduziu em maior refrescância, bastante adequada ao clima quente na maior parte do país o ano todo. Além disso, adições como de origem animal como o mel descaracterizam completamente a cerveja que costuma ser comercializada como bebida alcoólica mista.

 

bebida mista

Figura 8 - Exemplo comercial de bebida mista

Imagem: O Mundo da Química

 

Existem altualmente uma grande variedade de cervejas puro malte no mercado brasileiro, impulsionada em grande parte pela explosão de cervejarias artesanais, preocupadas com a qualidade acima do custo de produção.

 

Quem diria que tem tanta Química em um único gole! Boa degustação e lembre-se: SE DIRIGIR NÃO BEBA, SE BEBER NÃO DIRIJA!

 

Referências

 

1 Encyclopædia Britannica Online - Beer (em inglês), acessado em 30 de janeiro de 2020.

2 Mondo Birra - Un'estate a tempo di birra (em italiano), acessado em 30 de janeiro de 2020.

3 Gaab, J. S.; Munich: Hofbräuhaus & History : Beer, Culture, & Politics, p. 4. US: Peter Lang, 2008.

4 Terra: Cerveja mais forte do mundo tem 65% de álcool e custa R$ 260, acessado em 30 de janeiro de 2020.

5 BASSO, R. F.; Caracterização de leveduras não convencionais para produção de cervejas, Dissertação (Ciência e Tecnologia de Alimentos) - USP. São Paulo, p. 30, 2019.

6 Revista Globo Rural Online: Conheça a produção de lúpulo brasileiro, acessado em 30 de janeiro de 2020.

7 BARTMAŃSKA, A.; WAŁECKA-ZACHARSKA, E.; TRONINA, T.; POPŁOŃSKI, J.; SORDON, S.; BRZEZIWSKA, E.; BANIA, J.; HUSCZA, E.; Antimicrobial properties of spent hops extracts, flavonoids isolated therefrom, and their derivatives, Molecules, v. 23, n.8, 2018.

8 KERKELEIRE, D.; Fundamentals of beer and hop chemistry, Quím. Nova, v. 23, n. 1, p. 108-112, 2000.

9 MONTANARIA, L.; FLORIDI, S.; MARCONI, O.; TIRONZELLI, M.; FANTOZZI, P.; Effect of mashing procedures on brewing, Eur. Food Res. Technol., v. 221, p. 175-179, 2005.

10 Decreto nº 55871, de 26 de março de 1965.

11 Wikipedia - Diethyleneglicol (em ingês), acessado em 30 de janeiro de 2020.

 

Veja também